Manezinho de Cera



Octaviano Gonçalves de Oliveira

 Salvador, setembro de 2013.

Décadas atrás,  nos anos 1950 e 1960,  nossa cidade tinha algumas figuras humanas emblemáticas que ficaram na minha memória e certamente são lembradas por muitos dos meus contemporâneos. Uma destas figuras era um morrense simples,  conhecido por todos como Manezinho de Cera, um negro alto e calmo, um tanto falante e simpatizado por todos.

Salvo engano, esse seu apelido era porque ele fazia panelas e outros artefatos de barro. Mas, o que o tornou conhecido foi por ele vir à cidade para vender o tucum, ou simplesmente trocar por comida esse tipo de coco rasteiro encontrado principalmente nos arredores do Morrão, lugar onde ele morava com sua grande prole, uma vez que a cada ano nascia um rebento por ele gerado. Se essa situação ocorresse nos dias atuais, ele e a sua família com certeza nem precisariam sacrificar-se para andar duas léguas para vender essa espécie de fruto silvestre, pois, a sua família poderia receber uma boa quantia do Programa Bolsa Família e assim poderia não ocorrer, porque os seus filhos não frequentavam a escola.

Geralmente aos sábados, dia de feira, ele aparecia na cidade percorrendo as principais ruas  vestindo sempre um paletó de brim ou de linho conseguido por doação, com os pés descalços e carregando pendurado no ombro um saco de pano encardindo, dentro do qual trazia os tucuns, que só são consumidos quando estão bem duros, quando é exigido grande esforço para serem quebrados. Tanto assim, contam algumas pessoas, que uma senhora um dia perguntou-lhe, sem citar o nome do quê, se ele trazia (o tucum), ao que prontamente ele respondeu “Dona Fulana, o que a senhora quer ainda está mole”. Diziam alguns que ele mesmo falava sem nenhum constrangimento, que quando tinha necessidade de sair com a esposa e não tinha com quem deixar os filhos pequenos de braço e engatinhando, deixava-os em um buraco cavado para esse fim para eles não fugissem enquanto o casal estivesse fora, possivelmente devido a sua casa humilde não ter portas para serem fechadas.  

Lembro-me bem que ele era muito procurado por pessoas interessadas em um arrumar menino para ajudar à família. E quando perguntavam se ele tinha algum filho para morar com uma família, ele respondia: “Ainda não tenho, mas vou providenciar um para nos próximos anos dar ao senhor”. Era ele famoso por ser tido como um varão que todo ano gerava um filho, quase todos eles doados a famílias para serviços semiescravos. Entregar um filho parecia ser para ele lucro por ser menos um para ser alimentado, o que podia acontecer naturalmente porque naquela época o ordenamento jurídico brasileiro ainda não tinha o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que nos dias atuais amparam os direitos dos menores. Antes de entrar em vigência esse Estatuto, as crianças pobres, principalmente as negras como eram os seus filhos, trabalhavam para receber apenas a comida, algumas poucas peças de roupa e ser paga vez por outra uma pequena quantia para ele, o pai.

Das pessoas simples da cidade de Morro do Chapéu, do meu tempo de criança,  lembro de algumas que se tornaram figuras públicas. E Manezinho de Cera é uma delas. Merece ser homenageado.

 








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